sexta-feira, 5 de junho de 2020

APOCALISE




Ensurdessedoras angústias acordam muito antes de um despertar.
Lá fora nas ruas, ao relento, há cada vez mais uns quantos a dormir.
A tristeza, essa, já não se solidariza a um mero gesto simbólico de uma ajuda alimentar.
E para azar dos azares, um despertador toca à toa, confuso, sem motivar a plebe a se insurgir.
O trânsito caótico de carros, estancionados nos passeios, circunda as artérias pejadas de alcatrão
O tabaco é caro, mas se mata o vício, não há mesmo nada a fazer.
Nas televisões dissimuladas, passa mais um telejornal de desinformação.
E na prisão de cada casa há cada vez mais gente amontuada, fetida, húmida e mal encarada, sem saber enganar a fome a adormecer.

A palavra há muito desprezada, e mal empregue, reveste-se agora desimulada num troco de pão.
O homem cada vez mais crente em quase nada, mas sempre dono da sua razão, vai coçando na pele feridas até se formarem chagas, imaginando-se a transportar a cruz na sua jornada pelos caminhos  tortuosos da salvação.
Os tecnocrátas, exímios anarquistas da corrupção, vergam-se de joelhos, como fedelhos a fazerem birras, já sem arte nem engenho para extorquir o dízimo à  nação.

E no fundo de um beco sem saida, escuro, húmido e sombrio,  há mais um feto a vir ao mundo de estômago vazio, sem vontade de querer furar a vida. Nasceu literalmente a chorar e a gritar, como se à partida quise-se perecer logo ali. Isto por  ter nascido um sem abrigo, sem roupa e sem tecto. Um órfão mais órfão que um mendigo, carenciado de colo e de afecto. Uma vida à partida desprovida de nexo.
Uma história sem pulsação nem memória para haver um amanhã num futuro, capaz de se orgulhar.


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