segunda-feira, 29 de junho de 2020

REBOBINAR




Por mais que o Alzheimer um dia nos castigue nunca te esqueças do verso da nossa canção.
Que em abono da verdade, em nada tem a ver com a rima da melodia  de um refrão qualquer, se não, com a empatia com que nossos olhos sempre se quiseram.

Por mais adormecida que uma vida se encontre há sempre no peito mais que uma singularidade de um coração a bater

Desejar também se treina, não te esqueças disso.
Pois foi assim por treinar de uma forma tão deliberada e intensa que arriscamos a pele na pele, que nos rendemos ao atear a saliva no suor, que selvagens nos concedemos ao prazer, sem esperar um do outro sequer, retornas de uma lógica qualquer.

Agora só nos resta sonhar e esperar, quem sabe o descanso nos traga em sonhos, por recordações que certamente se realizaram a dois...

A nossa finitude só é bela enquanto houver rewinds que nos façam dar um passo atrás para olharmos de novo, e seguir adiante, mais equilibrados em frente.

Agora sonha bonito...


segunda-feira, 15 de junho de 2020

SINAPSE OCULAR





Como se alimenta o olhar se o paladar é tão necessário e, está só ao alcance da boca?

Será que basta dar aos olhos mais animação, cores, formas, sabores, vinho, "sede", luxuria, tesão?
Será que é através das boas ações que motivamos o pirilampo maestro que há dentro de nós a iluminar toda a córnea ocular?
Será que um bejo basta para alimentar a chama?

Será que desentoxicar com meditação, jejum intermitente ou não, leitura, música, alimentação, sol, desporto, culinária... não bastará para, polir as sinapses sensoriais e de novo voltar a carborar?
Será que há um brilho que, tal como a pele que fica mais baça com o passar do tempo, também este possa se gastar um dia?
Será que a riqueza das fontes só podem correr inadvertidamente sem a acção directa do homem?

Será que voltar a aprender a brincar é a solução para resgatar a criança que há em nós?
Será que só brilham os olhos, que são mais amigos e parceiros da sua voz interior?
Será que o brilho do olhar é mais espectacular naqueles em que uma mãe é no sempre presente nunca deixando os seus filhos órfãos?
Será que são os sonhos que nutrem um olhar?

Será que te deixas roubar pelos outros, o teu brilho?
Será o amor em todas as vertentes do o seu fulgor, quem nos abastece?
Será que ver e calar, viver omisso , cobarde, fraco, destorcidamente humilde é a razão para o apagão do olhar que tanto nos ensurdece?

* "O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano tudo isto contribui para esta perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for suscetível de servir os nossos interesses"

* José Saramago 



sexta-feira, 5 de junho de 2020

APOCALISE




Ensurdessedoras angústias acordam muito antes de um despertar.
Lá fora nas ruas, ao relento, há cada vez mais uns quantos a dormir.
A tristeza, essa, já não se solidariza a um mero gesto simbólico de uma ajuda alimentar.
E para azar dos azares, um despertador toca à toa, confuso, sem motivar a plebe a se insurgir.
O trânsito caótico de carros, estancionados nos passeios, circunda as artérias pejadas de alcatrão
O tabaco é caro, mas se mata o vício, não há mesmo nada a fazer.
Nas televisões dissimuladas, passa mais um telejornal de desinformação.
E na prisão de cada casa há cada vez mais gente amontuada, fetida, húmida e mal encarada, sem saber enganar a fome a adormecer.

A palavra há muito desprezada, e mal empregue, reveste-se agora desimulada num troco de pão.
O homem cada vez mais crente em quase nada, mas sempre dono da sua razão, vai coçando na pele feridas até se formarem chagas, imaginando-se a transportar a cruz na sua jornada pelos caminhos  tortuosos da salvação.
Os tecnocrátas, exímios anarquistas da corrupção, vergam-se de joelhos, como fedelhos a fazerem birras, já sem arte nem engenho para extorquir o dízimo à  nação.

E no fundo de um beco sem saida, escuro, húmido e sombrio,  há mais um feto a vir ao mundo de estômago vazio, sem vontade de querer furar a vida. Nasceu literalmente a chorar e a gritar, como se à partida quise-se perecer logo ali. Isto por  ter nascido um sem abrigo, sem roupa e sem tecto. Um órfão mais órfão que um mendigo, carenciado de colo e de afecto. Uma vida à partida desprovida de nexo.
Uma história sem pulsação nem memória para haver um amanhã num futuro, capaz de se orgulhar.